Nesses dias de caos, a inspiração é algo estranho que, feito brisa fria no verão, bate e avassala, obrigando qualquer aspirante a escritor a procurar o bloquinho mais próximo para registrar sua ideia primorosa.
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Nas rotineiras 7h da noite, saindo da mesma parada, dentro da mesma linha de ônibus, sentada como de gosto em uma cadeira na fileira da esquerda, eu parecia estar em mais uma volta para casa como outra qualquer depois de um dia cheio na faculdade. Mas, eis que sobe no ônibus um senhor: negro, idoso, deficiente físico, com duas muletas gastas, mendigo. A partir de então, a alma de jornalista-cronista me despertou toda a curiosidade, e se estava somente preocupada com qual música tocaria em sequência no meu fone de ouvido, passei a observar com atenção o senhor. Mais precisamente, observei as reações preconceituosas e de repulsa causadas pela presença dele dentro do coletivo.

Tudo começou bem antes da subida no ônibus. Já na fila de embarque estranhei uma contenção bem distante da porta do veículo. Eis que o senhor, coxo de uma das pernas, encontrava dificuldades em passar com suas muletas pela catraca.

– Por que ele não sobe por trás?

– Não pode, senhora. Norma da empresa.

Descobri que, mesmo pessoas em condições especiais (idosos acima de 65 anos, gestantes, deficientes, mães com crianças de colo), não tem acesso ao ônibus pela porta traseira. Apesar de tornar o embarque mais cômodo, tornou-se inviável devido à dificuldade de controle das pessoas que pedem acesso pela porta traseira, ainda mais considerando os ônibus que não tem o cobrador para fiscalizar todas as entradas. Muitas pessoas burlavam o sistema de cobrança de passagem, dando prejuízo, por fim, aos rodoviários. Com motoristas exercendo dupla função, o embarque por essa via é, por tanto, proibido.

Se sustentando com dificuldade sobre as pernas fracas, o senhor precisou de todo um malabarismo para superar a roleta. Quase todos os assentos da frente estavam tomados, mas só depois de muito sofrimento, uma moça próxima à entrada se apiedou em ajudar a segurar as muletas do senhor. Mais um desafio vencido.

Logo então veio a procura por um lugar para seguir viagem, que não tardou a encontrar, apesar da lotação gradual do veículo. Acomodado, esperou o ônibus sair da parada e, sentado da mesma forma, assistiu os vizinhos ao seu redor se retirar com cara de repulsa e constrangimento.

Acontece que já não tomava banho há alguns dias, e um mal cheiro circulava ao redor de si, afastando as mais afeiçoadas das almas. A barba grisalha crespa tinha uma aparência puída como suas roupas, e os pés descalços rachados conversavam com os olhos turvos em velhice e em sofrimento. O boné escondia um cabelo rajado por cortar e, feito a cruz da condenação, as muletas com alças remendados com fita isolante completavam o pacote.

Sentado, à espera do seu destino, estava pensativo e quieto enquanto os lugares iam se desocupando educadamente aos poucos.

Em certo ponto da viagem, puxou um maço de dinheiro do bolso. Se resignou a contar a arrecadação do dia, até que teve um problema com a matemática e resolveu pedir ajuda a outro senhor que havia permanecido sentado na fileira atrás da sua:

– Quanto que tem aqui?

Com os braços cruzados sobre o peito e com o olhar nas notas, o senhor limpo, de sapatos, calças e relógio, se dedicou a contar as notas estendidas na mão do outro, a uma distância que considerava segura.

– Deve ter uns 20 reais.

– Tome. Conte para mim.

– Não, não quero pegar nisso.

O de boné voltou as notas ao bolso e, pensativo como estava antes de arriscar esta primeira e única interação com terceiros, tornou a olhar para baixo enquanto não chegava ao seu destino.

O ônibus entrou na rua da igreja, e muito antes da parada em frente à capela, levantou com suas muletas. Era hora de descer. Como lutador que alterna entre uma luta e outra, saindo do olhar de pena, repulsa e preconceito dos demais ocupantes do ônibus, para a rua, campo de batalha sem fim; seguiu no corredor com semblante concentrado: não poderia deixar-se desequilibrar ali.

– Valeu Motorista, até amanhã!

– Tchau Gabriel, vai com Deus.

E seguiu seu caminho para dentro da igreja.

O motorista suspira, fecha a porta e acelera o ônibus.

– Já me disseram várias vezes para não deixar ele subir. Sempre paga a passagem, pega a linha todo dia no mesmo horário e desce aí na igreja. Parece que o padre faz um sopão depois da missa.

E como brisa de agosto, fria, porém bem-vinda, a inspiração me veio enquanto retrato da sociedade dura e hostil que vivemos. Poderia ser mais um mendigo que sobe em um ônibus qualquer, mas parte de ser humano é ter a sensibilidade de não hostilizar com alguém cheio de marcas (físicas e psicológicas) como ele.

Espero que Gabriel tenha entrado bem no ônibus hoje e que tenha conseguido um lugar confortável para se sentar. Que a arrecadação do dia dê para sobreviver por mais um tempo, e que a sopa pós-missa esteja sempre quente. Espero que seu nome santo lhe traga coisas boas.