citizenfour-03agosto2015

“Laura, nesta fase eu posso oferecer nada mais do que a minha palavra. Eu sou um funcionário sênior do governo na comunidade de inteligência. Eu espero que você entenda que entrar em contato com você é extremamente alto risco… A partir de agora, sabemos que todas as fronteiras de atravessar, cada compra que você faz, cada chamar você discar, cada torre de celular que você passa, amigo que você mantenha… site que você visita … linha de assunto que você escrever … está nas mãos de um sistema cujo alcance é ilimitado, mas cujas garantias são não. … no final, se você publicar o material de origem, eu provavelmente será imediatamente implicados… Só peço que você verifique esta informação torna-lo para casa para o público americano.. Obrigado, e tenha cuidado. Citizenfour”.[1]

Às vezes, o surreal e o inimaginável não estão apenas na ficção. A realidade também pode surpreender por está além dos limites da moral e exceder as expectativas de cada um. Os crimes mais brilhantes são aqueles fora do nosso plano de possibilidades e, em tempo onde a realidade virtual subjuga a realidade física, vivemos sem nos dar contas dos perigos concretos.

Pois, afinal, quais as chances de meu celular/computador/conta do Facebook ser invadido por alguém? Quantas vezes já se pegou com a sensação de estar sendo observado? Alguma vez já teve seu conteúdo pessoal compartilhado e replicado na internet? Se ainda não, sorte. Vivemos na era do hiperlink, nada está desconectado e fora da rede. A privacidade nunca esteve tão frágil, e a liberdade existe apenas dentro de limites específicos.

Como se premeditasse a situação, George Orwell descreve no Best-seller 1984 uma sociedade sem liberdade ou privacidade em um sistema opressor e hegemônico e, estranhamente, em 2013, após o vazamento de informações de que os governos dos Estados Unidos e outras potências mundiais espionavam pessoas e países ao redor do mundo, o planeta teve uma certeza: “The Big Brother [still] watching us[2].

A política de vigia e escândalos de espionagem de países hegemônicos, em especial dos Estados Unidos, que vieram à tona em 2013 são tema central do Documentário em cinéma vérité Citizenfour, dirigido por Laura Poitras e lançado em outubro de 2014.

Protagonizado pelos encontros entre o Edward Snowden (ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional), Glenn Greenwald (Jornalista do The Guardian) e Laura Poitras (cineasta famosa por filmes relacionados ao 11 de setembro) num quarto de hotel em Hong Kong no junho de 2013, o filme é um registro de cenas reais do momento em que Snowden resolve entregar documentos confidenciais que fornecem evidência de invasões indiscriminadas e ilegais em massa de privacidade pela NSA, contando com a ajuda especializada de profissionais da mídia para publicar as informações da maneira correta.

Dos 114 minutos de duração, pelo menos 60 são de imagens gravadas durante as conversas que tiveram no quarto do hotel em Hong Kong. Desse encontro entre Laura, Greenwald e Snowden saíram as denúncias de como os EUA e outras potências violam princípios fundamentais da democracia e do direito, abalando relações diplomáticas e mudando a maneira como os cidadãos enxergam seus governos, levantando discussões sobre segurança, soberania nacional e liberdade individual. Citizenfour nos coloca no quarto junto aos três personagens, que tentam gerenciar a tempestade gerada por suas informações na mídia, forçando-os a tomar decisões rápidas que irão impactar suas vidas e todos aqueles que os rodeiam.

Dentre todos os acontecimentos que se desenrolam frente à câmera, Laura Poitras não é mostrada no filme. Ela compara isso com nunca ver um escritor em um livro. Para ela, o trabalho é sobre o que está se desenrolando na frente de sua câmera. Poitras obteve cerca de 20 horas de imagens de Edward Snowden para fazer o filme, após convencê-lo da importância daquele momento para o mundo. Ela é o narrador do filme, intervindo apenas em momentos onde não existem imagens para sustentar seu discurso, dando mais ênfase significativa ao texto em fundo preto que se apresenta.

O Documentário é feito em cinéma vérité, conhecido como cinema direto ou de observação, originado por Jean Rouch. Esse estilo combina a improvisação com o uso da câmera para revelar a verdade ou destacar assuntos escondidos atrás crua realidade, mostra através de uma edição simples o real por trás dos fatos. Todos os silêncios e momentos de contemplação são valorizados e preservados, como forma de priorizar a essência do momento real que foi registrado. Citizenfour mostra o que aconteceu, como aconteceu. Por vezes não há um enquadramento ideal ou um foco mal ajustado, porém esses elementos colaboram com a construção estética do documentário, que traz toda frustração, ansiedade e angústia pelas quais passaram os protagonistas para a tela.

Não atoa, arrecadou uma bilheteria de $3.000.000 dólares, considerado um volume de peso para documentários, recebendo aclamação da crítica após a libertação, ganhando um total de 16 premiações e mais de 25 indicações, incluindo o Oscar de Melhor Documentário no 2015 Oscars .

Vemos os conflitos do Edward lidando com a pressão esmagadora de estar no centro das discussões da mídia, acompanhamos parte do trabalho do Greenwald ao redor do mundo, indo nas redações de diversas emissoras, para esclarecer os fatos e as linhas de raciocínio das denuncias, bem como a rotina de viagens e fugas da Laura que, já conhecida e procurada pelo governo americano, passa a trafegar por outros países com receio de uma apreensão eminente.

Não só sobre um sistema internacional de espionagem, o filme trata da relação fonte-jornalista em um momento de comunicação de crise e de denúncias. Dada à natureza da situação, os três personagens circundavam em uma tênue linha que os mantinham vinculados à ética e à moral. Após a divulgação das informações, por vezes se viram perseguidos e encurralados por autoridades ao redor do mundo que queriam por fim à série de exposições das atividades ilegais do governo. Citizenfour não só mostra os perigos da vigilância governamental, mas faz você se senti-los.

Vivemos em um mundo de constate exposição aos meios. Câmeras nos vigiam a cada esquina e estão a postos em nossos bolsos caso algo mereça mínima atenção. A mídia tradicional trabalha de forma geral a pautar os acontecimentos mais relevantes, de acordo com os interesses hegemônicos e dominantes. O jornalismo de que trata o filme é o jornalismo investigativo, que tem seu incremento após a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos se envolveram na Guerra do Vietnã e o presidente Richard Nixon acabou envolvido em um dos maiores escândalos político que passou a ser conhecido como o Caso Watergate. Algumas escolas mais antigas consideram que toda reportagem é essencialmente investigativa, porém o que vemos hoje é a segmentação do jornalismo, tornando o Investigativo uma área particular na profissão. O jornalismo investigativo essencialmente vai contra os poderes hegemônicos, ao tornar qualquer um que tenha atividades suspeitas em possíveis investigados e denunciados.

O Jornalismo Investigativo distingue-se por divulgar informações sobre más condutas que afetam o interesse público, reconstruir acontecimentos importantes, expor injustiças, desmascarar fraudes, divulgar o que os poderes públicos querem ocultar e mostrar como funcionam esses órgãos públicos.

Vemos a matéria ser montada diante dos nossos olhos, quando Greenwald, Snowden e Poitras desenvolvem sua relação e trabalham na divulgação e apuração meticulosa das informações entregues por Snowden. Por vezes, políticos e oficiais do governo americano são questionados sobre as denúncias, e insistem em negar que estejam espionando indiscriminadamente cidadãos ao redor do mundo. O jornalismo investigativo aqui apresenta provas, informações e arquivos, alimentado por sua fonte que ocupou um lugar privilegiado mas se rebelou contra o sistema corruptor, para sustentar as afirmações e desmascarar a invasão e supressão de direitos primordial de milhões de pessoas.

De forma geral, o documentário é um retrato pintado com cenas reais da relação fonte-jornalista. Vemos a área do jornalismo se desenvolver, e a fonte reagir à mídia expondo-o ao redor do mundo. O filme é sobre todo episódio pelo qual passa Snowden, sobre o esquema de espionagem, bem como sobre o trabalho da impressa internacional que, como qualquer sistema na era pós-moderna, é formada com um intrincado conjunto de relações, influenciando-se mutuamente. De discussões profundas, desde de sua fotografia e estilo cinematográfico, o filme diverge muito do modelo hollywoodiano de filmes para cultura de massa.

            O gênero documentário muito tem a acrescentar ao jornalismo, pois sua aproximação com o gênero jornalístico da reportagem é tão próxima que chegam a se confundir em determinados pontos. O Jornalismo audiovisual apenas cresce com iniciativas como essa, o que contribui para a progressão da missão original da área: levar informações que sejam pertinentes ao conhecimento público, de forma compreensível e acessível.

Pois afinal, existe uma forma melhor de explicar a milhões de pessoas como foi o processo de delação do Edward Snowden sobre o sistema de espionagem dos EUA do que fazendo um filme?

REFERÊNCIAS

https://en.wikipedia.org/wiki/Citizenfour

https://tecnoblog.net/169231/citizenfour-documentario-snowden/

http://veja.abril.com.br/entretenimento/filme-snowden-pouco-acrescenta-ao-documentario-citizenfour/

http://www.truth-out.org/speakout/item/27313-eight-days-in-a-hong-kong-hotel-a-film-analysis-of-citizenfour

http://www.premiumessayhelp.com/samples/citizenfour-film-analysis/

https://www.theguardian.com/film/2014/oct/19/citizen-four-review-edward-snowden-nsa-engrossing

http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2015/04/citizenfour-um-filme-que-faz-historia-4737855.html

http://www.tecnoexplore.com.br/2016/02/citizenfour-resenha-critica-atual-situacao.html

http://www.planocritico.com/critica-citizenfour/

http://www.magazine-hd.com/apps/wp/citizenfour-em-analise/

[1] Citação completa do e-mail criptografado enviado pelo pseudônimo de Snowden que deu origem às denuncias e ao filme

[2] Referência a trecho do Livro 1984 “Big Brother is watching you”. ORWELL, George. 1984. 29ª ed. São Paulo: Ed. Companhia Editora Nacional, 2005.